quinta-feira, 23 de março de 2023

ÁGUAS DE MARÇO. E DE JANEIRO, FEVEREIRO...

Findo o tenebroso tempo das ruidosas e invasivas motociatas, uma barqueata (e nem é a primeira) desfilou pelas águas da Baía de Guanabara no último domingo. O cortejo marítimo, levando pescadores, ambientalistas, pesquisadores, comunicadores, e acompanhado por uma embarcação da Marinha, sinalizou a abertura da I Conferência Participativa de Restauração da Baía de Guanabara (PRAI-BG, 2023-2030).
Elmo Amador, geógrafo, geólogo e ambientalista, viu nas qualidades da Guanabara também a sua perdição: “A água abrigada, a facilidade de acesso ao interior através de suas águas e rios e as riquezas de suas matas atraíram a cobiça dos europeus que aqui se instalaram e construíram uma cidade colonial, que para se desenvolver soterrou brejos, lagunas, manguezais, restingas e matas, arrasou morros, modificou a geografia e finalmente envenenou as suas águas”. 

 Nem o título de Patrimônio Mundial, concedido pela UNESCO em 2012, salvou a Baía de Guanabara da degradação ambiental. Amador faleceu em 2010 sem ver sua amada baía livre da poluição, apesar do 1,2 bilhão de dólares gastos com o PDBG. O prometido legado das Olímpiadas do Rio, de 2016, também não se concretizou. 

 Em junho de 2022, um estudo do Inea concluiu que os 21 pontos analisados apresentavam resultado ruim ou péssimo. Mudam atores - Cedae, Águas do Rio – mas o problema não só persiste, como cresce. As causas vão desde despejo de esgoto não tratado, de lixo, resíduos industriais até navios sucateados. 

A luta das comunidades que vivem no entorno da Baía de Guanabara é uma das muitas frentes necessárias na “guerra” pelo direito à água limpa. O direito à água e ao saneamento está consagrado numa Resolução da ONU de 2010, mas ainda distante de milhões de pessoas pelo mundo. No século 20, segundo dados da Unesco, o consumo de água no planeta aumentou seis vezes, duas vezes mais do que a população. Contudo, foi o crescimento da atividade industrial e especialmente do agronegócio que engoliu a maior parte deste volume. 

 Segundo levantamento do MapBiomas Água, o Brasil ganhou 1,7 milhão de hectares de superfície de água em 2022, mas os pesquisadores alertam que nos últimos 20 anos observa-se uma retração quase constante neste volume de água. Objeto do desejo de grandes corporações, lobbies poderosos trabalham para a privatização da água. 

 No Dia Mundial da Água há pouco que celebrar e muito a repensar. E agir. A prioridade no acesso à água deve ser para manutenção da vida. É para a vida e não para a morte que a água existe no planeta. Que esta preciosidade chegue a todos, livre de contaminantes, resíduos da mineração e do garimpo, substâncias tóxicas, despejos industriais. 

 Como diz Eduardo Galeano, a utopia pode ser inalcançável, mas nos faz caminhar em sua direção. E o caminho para alcançar esse direito básico à água limpa é pavimentado pelo investimento na educação ambiental, por maior conscientização da população, empenho na fiscalização. E uma redefinição do conceito de desenvolvimento. 


FONTES:

Foto barqueata: https://baiaviva.org.br/

 

AMADOR, Elmo. Sugestões de roteiros a serem percorridos por embarcação na Baía de Guanabara – Projeto Educação Ambiental do PDBG, 2003

 Baía de Guanabara tem toda sua água classificada como péssima ou ruim - Publicado em 28/06/2022 - 17:30 Por Solimar Luz - Repórter da Rádio Nacional - Rio de Janeiro

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/meio-ambiente/audio/2022-06/baia-de-guanabara-tem-toda-sua-agua-classificada-como-pessima-ou-ruim?fbclid=IwAR1GSqdBOnMha4FXT5czqr9ii-v8HwaNYVFHJy-wRKReI4Iw2vDsaoggS54

Rio de Janeiro é Patrimônio Mundial - https://news.un.org/pt/story/2012/07/1409211

Brasil ganha 1,7 milhão de hectares de superfície de água em 2022

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-02/brasil-ganha-17-milhao-de-hectares-de-superficie-de-agua-em-2022 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

MESSI, Lionel

 

Não sei bem quando me encantei por Lionel Messi. Acho que quando soube de sua relação com a avó materna. Eu sequer era avó na época, mas a história envolvendo o pequeno menino de Rosário, sua abuela e o futebol me emocionou. Quanto mais conhecia sua trajetória, seu caráter e seu talento com a bola, mais o admirava. Passei a torcer por ele, tanto no Barça como na seleção argentina. Estive em Barcelona em 2007, e, claro, visitei o Camp Nou, mas naquela ocasião era o R10, de quem também sou muito fã, que se destacava.

Loja do Camp Nou, F.C.Barcelona, 2007

Não me recordo também quando e onde comprei o livro de Leonardo Faccio, edição brasileira, de 2013. Lembrei dele nesta semana e separei algumas passagens que compartilho aqui.

           “O Pulga tinha 11 anos quando saiu pela primeira vez do bairro sem seus pais. Fez isso para visitar o túmulo de sua avó materna, a mulher para quem ele dedica seus gols hoje. Foi em um sábado de primavera. Messi não estava sozinho, um vizinho o acompanhava.”

“A avó foi enterrada em Vila Gobernador Gálvez, distante cerca de trinta minutos de ônibus ao sul de Rosário, com uma paisagem de favelas, esgotos a céu aberto e cachorros perambulando pelas ruas de terra.”

“Dois garotos de 11 anos estavam procurando um cemitério. Messi tinha dado certeza de que saberia chegar, mas, na metade do caminho, eles já estavam perdidos. [...] Antes de visitar o túmulo da avó, não haviam feito nada mais perigoso do que passar por um alambrado para brincar de pistoleiros. Faziam isso no campo de manobras militares que continua sendo parte do bairro. Naquela manhã de primavera, Messi disse a [Diego] Vallejos que não voltaria para casa enquanto não tivesse encontrado o que estava procurando.”

Em julho de 2014, enquanto meu avião aterrissava no aeroporto de Ezeiza, a seleção brasileira iniciava seu calvário frente aos alemães. Por ironia do destino, foi em minha primeira viagem a Buenos Aires que assisti ao 7x1. No hotel, ao ligar a TV, o jogo já lá pela metade, cheguei a pensar que o placar que via na telinha era uma montagem, alguma piada, uma broma dos jornalistas esportivos hermanos. Só que não. Como eu não estava muito ligada na Copa, sobrevivi à inusitada experiência sem problemas.

Estava ainda na capital portenha quando a seleção albiceleste encarou a Holanda na semifinal. Desci para o restaurante do hotel e torci muito com os argentinos pela vitória de Messi e seus companheiros. Dei sorte para os hermanos, me entrosei tanto com eles que chegaram a me pedir para ficar na cidade até o final da Copa. Mas meu roteiro de viagem apontava para a outra margem do Rio da Prata e, dividida entre o desejo de conhecer o Uruguai e a vontade de continuar junto à torcida argentina, embarquei no buquebus. Assim, no dia da grande final com a Alemanha, eu não estava mais em Buenos Aires. No hotel em Pocitos, ouvi espantada a algazarra dos uruguaios (ou seriam brasileiros por lá?). Comemoraram muito a derrota dos vizinhos. Foi triste.



Revista que trouxe da Argentina







No livro de Faccio, lemos também:

           “A lealdade é um ato de fé que, às vezes, não é correspondido. Messi arriscou-se dizendo não à seleção espanhola sem saber se seria convocado pela Argentina. No início de 2002, recebeu o passe internacional do Newell’s Old Boys de Rosário e, nos meses seguintes, jogou em todas as categorias juvenis do Barça, passou para a terceira divisão e, depois, pelo Barça C. “

“Messi queria jogar pela Argentina, mas passaram-se cinco meses desde que a seleção da Espanha se propôs a convocá-lo até que recebesse o convite da federação de futebol de seu país. Era tão desconhecido que os dirigentes do futebol argentino não sabiam como se pronunciava seu nome e sobrenome. Na carta que enviaram ao F.C.Barcelona para pedir a cessão de Messi, referiram-se a ele como "Leonel Mecci”.

A AFA, Associação de Futebol Argentino, havia reagido tarde e também de modo improvisado.

- Na última hora, armamos uma partida para que Messi estreasse – disse-me Hugo Tocalli, que naquela época era diretor técnico da seleção juvenil. – Inventamos a partida só para ele.”

 Costumo chamar o Pulga de “meu bebê”. Pretensão pura. Mas, assim penso que me conecto com aquela abuelita que o levava ao futebol e acreditou no sonho e na determinação do menino que tinha problemas de crescimento... e hoje é um gigante. 


domingo, 25 de setembro de 2022

ÁGUA: DIREITO HUMANO AMEÇADO (2)

Ainda que estejam no rol dos Direitos Humanos desde 2010, conforme resolução da ONU, o acesso à água limpa e os serviços de saneamento básico ainda são desconhecidos por milhões de pessoas em todo mundo, inclusive por boa parte dos brasileiros. Números do portal do SNIS batem com os do estudo do Instituto Trata Brasil e revelam que cerca de 35 milhões de brasileiros ainda vivem sem água tratada e 100 milhões não são atendidos pela coleta de esgoto. 

Sancionado em 2020 pela Lei 14.026, o Novo Marco Legal do Saneamento não foi capaz de reverter este quadro. Os bilionários investimentos no setor não foram suficientes para atingir as metas da legislação. Os dados constam da 14ª edição do Ranking do Saneamento, publicado pelo Instituto Trata Brasil, que avaliou os 100 maiores municípios brasileiros. Cidades dos estados do Sul e Sudeste ocupam as primeiras posições do ranking, lideradas por Santos (SP). Entre os 20 piores estão municípios da região Norte, alguns do Nordeste e Rio de Janeiro.

O Plano Nacional do Saneamento Básico, de 2007, trouxe avanços, mas a Lei que o criou já sofreu inúmeras alterações. Houve redução nos investimentos na área e o Novo Marco do Saneamento facilitou a privatização dos serviços prestados pelo setor. Pela nova lei, empresas públicas não poderão ser contratadas diretamente, devendo disputar uma licitação com empresas privadas. Outra perda, foi o veto do Presidente da República ao artigo que permitia a extensão dos contratos atuais com as empresas públicas por mais 30 anos.



No Estado do Rio, o leilão de blocos da Cedae, empresa pública responsável pelos serviços de água e esgoto, foi levado adiante apesar de várias contestações e protestos. Em recente
seminário promovido pelo Instituto Onda Azul, o presidente da Cedae, Leonardo Soares, alegou que a empresa não foi privatizada, mas é parte de um “quebra-cabeças” destinado a viabilizar a prestação dos serviços de água e esgoto à população, prejudicados por falta de recursos. A Cedae faz a captação e o tratamento e as concessionárias se encarregam da distribuição. Segundo Soares, a empresa está recuperando os prejuízos dos anos anteriores e irá ampliar os serviços.

Por outro lado, durante a Semana do Meio Ambiente, realizada pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, em junho, Ana Lucia Brito, professora do PROURB/UFRJ e coordenadora do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas, destacou que o leilão de blocos da CEDAE foi uma contrapartida relativa a um empréstimo feito pelo governo estadual no exterior e foi realizado sem um debate público prévio. A pesquisadora ressaltou a falta de representatividade da população na Câmara Metropolitana, uma vez que muitos municípios do estado não têm assento no órgão e ficam sujeitos às decisões daqueles que lá têm participação.

 

A empresa vencedora da licitação, Águas do Rio, informa em seu site que é “concessionária da Aegea, líder no setor privado de saneamento básico no Brasil, é responsável pelo abastecimento de água e esgotamento sanitário em 27 municípios do Estado do Rio de Janeiro, incluindo 124 bairros da capital, atendendo 10 milhões de pessoas.” Informa ainda que, considerando o início da concessão, novembro de 2021, a companhia realizará “o maior investimento em saneamento básico no país, em torno de R$ 39 bilhões” e que a universalização dos serviços de água e esgoto será alcançada nos primeiros 12 anos. Contudo, quase um ano depois da concessão, são frequentes na mídia as reclamações dos usuários quanto à má qualidade dos serviços, tanto prestados pela Cedae quanto pela empresa Águas do Rio. Muitas vezes as contas chegam, mas a água não.

 

Suyá Quintslr, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), vê uma contradição entre as privatizações e o discurso que promete reduzir desigualdades. Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, quando da aprovação pelo Senado do PL 4162 que criou o Marco do Saneamento, em julho de 2020, a pesquisadora destacou a “tendência amplamente documentada dos operadores privados optarem por investir nos serviços nas áreas nas quais eles são lucrativos, deixando as redes e infraestruturas das áreas habitadas pela população com reduzida capacidade de pagamento se degradarem". Na mesma ocasião, o engenheiro e coordenador do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Marcos Montenegro, afirmou que o projeto “vem embalado por uma campanha que destaca as mazelas, mas não conseguiu fazer um diagnóstico das causas dos problemas que nós vivemos”

 

Num processo inverso às privatizações, nos últimos anos, mais de 300 cidades em diferentes países reestatizaram seus serviços de tratamento de água e esgoto, conforme aponta um estudo do Transnational Institute, um centro de pesquisas sediado na Holanda. Entre elas, Paris, Berlim, Turim, Buenos Aires e La Paz. Sobre essas remunicipalizações, Suya Quintslr destacou que elas ocorreram por diferentes motivos, mas sempre com foco no interesse público. No caso da criação da Eau de Paris, por exemplo, a intenção foi assegurar que os recursos recebidos seriam reinvestidos por uma empresa pública e não apropriados por uma empresa privada. Já na América Latina, as cidades de Cochabamba e Buenos Aires passaram por processos mais conturbados. Na cidade boliviana, a reestatização ocorreu após grande mobilização popular, a Guerra da Água, que contestava os aumentos de tarifa e as restrições impostas ao acesso até mesmo a fontes de água bruta. Os cidadãos da capital argentina também tiveram o fornecimento de água remunicipalizado após a concessionária privada descumprir cláusulas do contrato e promover aumentos de tarifa, ocasionando transtornos e prejuízos à população.

 

A pesquisadora chamou a atenção para o fato de que há diferentes maneiras de a inciativa privada participar do fornecimento de serviços essenciais, como o saneamento. Citou como exemplo a Sabesp, companhia estadual que lançou suas ações na bolsa, mas manteve o Governo do Estado de São Paulo como principal acionista e controlador. Lembrou também as PPPs, ou parcerias público-privadas, como a adotada em Recife. No caso da Cedae, o modelo adotado é a concessão dos serviços de água e esgotos para uma companhia privada e, neste tipo de contrato, ela considera que deveria haver uma regulação forte por parte do Estado.

Foto: https://blog.brkambiental.com.br/relacao-entre-saude-e-saneamento/

 

domingo, 4 de setembro de 2022

ÁGUA : DIREITO HUMANO AMEAÇADO (1)

 Desde 2010 o acesso à água limpa e segura e ao serviço de saneamento básico fazem parte dos Direitos Humanos, reconhecidos como tal por resolução da ONU, de 28/07/10.   Até então, o direito à água era entendido como necessidade humana básica. A resolução da ONU coloca em outro patamar e dá maior visibilidade a um tema fundamental, levando o assunto para além das discussões de urbanistas e ambientalistas.

 Alguns países, como Equador (2008) e Bolívia (2009), foram mais longe e, antes mesmo da ação da ONU, estenderam o direito à água a outros entes, como a própria Natureza e a Mãe Terra, fazendo-o constar em suas respectivas Constituições. A Constituição Brasileira de 1988 estabelece alguns direitos sociais, como saúde, educação, moradia e outros, mas não faz menção à água e saneamento especificamente. 

Salto Barão do Rio Branco - Prudentópolis-PR - set.2021

Conforme números de 2020 do portal do SNIS, 84,1% da população brasileira têm acesso à água encanada, já o acesso a saneamento básico não passa de 55% e apenas metade deste volume é de esgoto tratado. E o desperdício é imenso: cerca de 40% do volume de água tratada se perdem durante o abastecimento, e não é de hoje. Em matéria no site Vozerio, de 2015, o professor Paulo Canedo, da Coppe/UFRJ, já alertava sobre essas perdas.

 No século 20, segundo dados da Unesco, o consumo de água no planeta aumentou seis vezes, duas vezes mais do que a população. Fatores como crescimento da atividade industrial e especialmente do agronegócio contribuíram para esse salto. O recente Relatório mundial das Nações Unidas sobre desenvolvimento dos recursos hídricos 2021 aponta que “a agricultura é responsável por 69% das retiradas de água em âmbito mundial, que é usada principalmente para irrigação, mas também inclui a água para rebanhos bovinos e aquicultura. Essa proporção pode chegar a 95% em alguns países em desenvolvimento”, como é o caso do Brasil. Contudo, prossegue o Relatório, a agricultura é responsável por apenas cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, indicando que “o valor agregado do uso da água na agricultura é muito baixo”. O relatório informa ainda que a indústria – incluindo o uso e a geração de energia – é responsável por 19% do uso da água.

 Em 2019 a Agência Nacional de Águas (ANA) publicou o Manual de Usos Consuntivos da Água no Brasil no qual prevê que o consumo de água no país deve crescer 24% até 2030. Já um estudo do Instituto Trata Brasil mostra que o Novo Marco Legal do Saneamento, aprovado em 2020, não teve efeito significativo sobre o acesso da população à água potável ou aos serviços básicos de saneamento. Considerando-se um universo de 215 milhões de habitantes e os percentuais apontados pelo SNIS, os brasileiros que ainda vivem sem água tratada somam 35 milhões e outros 100 milhões não são atendidos pela coleta de esgoto. 

A pandemia de Covid, que circula pelo planeta desde 2020, expôs de modo contundente como este direito fundamental não é respeitado em muitos países, especialmente nos mais pobres. Relatório do Unicef, de outubro de 2020, apontou que apenas três em cada cinco pessoas em todo o mundo têm instalações básicas para a lavagem das mãos e que três bilhões de pessoas, ou 40% da população mundial, não têm lavatórios com água e sabão em casa. O Estado do Rio reflete esta triste estatística: durante a Semana do Meio Ambiente, realizada pela UFRJ em junho último, Guilherme Pimentel, Ouvidor Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio, relatou que, durante a pandemia, uma das demandas que o órgão mais recebeu foi sobre a falta de água nas residências e a impossibilidade de manter os cuidados preventivos mínimos contra a doença.

Painel Exposição H2O, ArteSesc Rio, 2009

Se nas áreas urbanas de metrópoles como o Rio de Janeiro o acesso à água limpa é deficiente, no Norte e Nordeste do país a situação é grave, especialmente no semiárido.  O programa de construção de cisternas foi fortemente afetado pelo corte de verbas nos últimos anos e, segundo a rede ASA Brasil (Articulação Semiárido Brasileiro), 350 mil famílias não têm sequer água para beber, dependendo dos caminhões-pipa. De tecnologia simples e eficiência reconhecida pelo Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), as cisternas do semiárido vinham possibilitando às populações daquela região não apenas o acesso à água para consumo próprio, mas permitindo a agricultura, a criação de animais, de modo sustentável e gerando emprego e renda. 

Políticas públicas pensadas em conjunto com a sociedade civil, incluindo informação e educação de qualidade, ensino de técnicas de tecnologia social, aproveitamento de recursos locais, qualificação de mão de obra, devem ser pontos fundamentais em qualquer plano de governo - seja nacional, estadual ou municipal – que esteja verdadeiramente engajado na preservação e restauração do meio ambiente e, por conseguinte, no respeito à natureza, no cuidado com a saúde e dignidade de seu povo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

PEDRO e CHICA (e livros)

Entrava agosto, deste 2020 distópico. Os oito primeiros dias deste mês seriam os últimos, aqui neste planeta, de Pedro e Chica. Não os levou a pandemia que há meses se move pelos continentes. Ele sucumbiu a problemas respiratórios agravados pelo Mal de Parkinson. Ela, com câncer no pulmão.

 Em minha biblioteca, pobre neste gênero literário, coincidentemente estão as biografias deles dois. Livros de papel – esse produto que a política econômica vigente quer taxar, como se luxo ou supérfluo fosse – são como arcas onde histórias de vida de pessoas como Pedro e Chica podem e merecem ser guardadas e preservadas, mesmo numa era digital. 

 

A biografia de Pedro Casaldáliga eu adquiri ano passado, quando conheci a autora, a jornalista Ana Helena Tavares, durante a campanha para as eleições na ABI-Associação Brasileira de Imprensa.  Ao saber do livro, me interessei em conhecer melhor a história de vida do bispo revolucionário. 

É um relato minucioso e, sobretudo, afetuoso, da trajetória do religioso catalão que aportou por aqui em 1968 e fez-se camponês, fez-se indígena, entregando-se às causas dos mais desassistidos. Conheci pessoalmente a biógrafa, mas não o biografado. 

Na página 183, Ana Helena escreve:

“O homem que nasceu rodeado por gado e que tinha todas as possibilidades de buscar prosperidade optou pela libertação. Não é para qualquer um passar dos 90 anos com a coerência dos que abraçaram o povo e nunca se afastaram dele.

"Pedro quer que o povo carregue seu caixão, a pé, sem carreata, tendo como fundo musical Isaías – tempo de advento. E deseja ser enterrado no Cemitério dos Karajá, em São Félix do Araguaia. De baixo de um pé de pequi, ‘entre um peão e uma prostituta’.”

 E assim foi. Seguindo a vontade de Pedro, a cerimônia realizada ontem às margens do Araguaia seguiu seu desejo de ser enterrado sem pompas, junto àqueles que ele elegeu como seus companheiros de jornada.


Chica Xavier eu conheci pessoalmente. Mãe do amigo de longa data Clementino Jr, de quem me aproximei pelos laços do cinema, tive a sorte de estar com ela pelo menos uma vez. E foi exatamente no lançamento de sua biografia, em 2013, escrita pela xará Teresa Montero. O talento da Chica atriz eu já conhecia há tempos, mas a sensação de estar perto dela foi uma bela descoberta. Uma energia luminosa, de harmonia e afeto envolvia quem dela se aproximava. Nas homenagens que agora lhe rendem, vemos muitos relatos sobre essa aura de amor e cuidado que distinguia Chica.


 Assim escreve Teresa Montero à página 19:

            “A trajetória de Chica Xavier é um retrato das contradições de um país que se recusa a se olhar no espelho, a conhecer a sua história, a aceitar as sua formação étnica. O fato de Chica Xavier ter exercido, durante um período, a função de funcionária pública paralelamente à de atriz permitiu-lhe construir um olhar diferenciado e consciente como cidadã e artista.”

            “Para Chica, a fé não é uma trilha para a alienação, para a acomodação, para a passividade. Ela opta pelo caminho do sincretismo, que não divide, não discrimina, não hierarquiza.”

            “A mistura de religião, educação e arte construiu um tipo de mulher bastante singular: a ‘Mãe do Brasil’. A mãe  cuida, protege, sabe a importância de se preservar os rituais, conservar as tradições, dialogar com a Natureza. Ela guia, aponta, conscientiza.” 

Estou certa de que estar perto de Pedro Casaldáliga também era uma experiência especial, algo que faz estremecer a centelha de humanidade que guardamos em nós e nos faz lembrar que, como diz Fernando Pessoa, “o amor é que é essencial” e que o homem não é só matéria, mas uma “carne inteligente”. O lema de Pedro era “humanizar a Humanidade”. Tão necessário nestes tempos sombrios. 

Origens diferentes, trajetórias diferentes. Ele, nascido na Catalunha em 1928. Ela, nascida na Bahia em 1932. Mas há algo que me faz juntar essas duas criaturas, além do fato de terem partido no mesmo dia e de eu ter a história de suas vidas na minha estante: o cuidado com o outro. 

Gosto de pensar que Pedro, o bispo católico, tomou pela mão a Mãe Chica, católica, apostólica, umbandista (como a define no livro sua filha Christina), e juntos foram abrindo porteiras, rompendo cercas e correntes, com a certeza de terem cumprido a missão que Deus, Oxalá, e outros tantos deuses e deusas que possa haver no comando do universo, lhes confiaram. 

Foto funeral Pedro Casaldáliga:

 https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/08/12/corpo-de-dom-pedro-casaldaliga-e-enterrado-em-cemiterio-indigena-em-mt.ghtml